Um dos grandes nomes da filosofia contemporânea e ex-ministro da Educação da França, entre os anos de 2002 e 2004, Luc Ferry realizou, no Grande Auditório do Teatro Positivo, a palestra “Os Valores da Vida”, baseada no best seller internacional (inclusive no Brasil) Aprender a Viver, com tradução simultânea.
Em entrevista exclusiva, concedida por e-mail à Gazeta do Povo, o pensador fez reflexões sobre temas palpitantes no mundo atual, como a crescente instrumentalização da educação, a crise econômica europeia, a globalização e o renascente interesse pela Filosofia. Leia a seguir trechos da conversa, separados por tópicos.
Interesse pela Filosofia
“A razão principal é que falta sentido em nossas sociedades. Há, sobretudo na Europa, moral, direitos humanos, muita proteção social e da riqueza, mas há muito pouco sentido e espiritualidade. Para compreendermos bem esse ponto, é crucial que façamos uma distinção entre valores morais e valores espirituais. Tentemos colocar as coisas de modo simples. A moral, seja qual for o sentido que lhe dermos, é o respeito pelo outro, digamos que seria os direitos humanos acrescentando a benevolência, a generosidade. Conduzir-se moralmente é respeitar o outro e, de modo ativo, querer o seu bem. Se aplicássemos perfeitamente os valores morais, não haveria mais neste planeta massacres, violações, roubos, assassinatos ou injustiças. Seria uma revolução. E, contudo, isto não nos impediria de envelhecer, de morrer, de perder um ente querido, nem mesmo, se for o caso, de sofrer por um amor ou, pura e simplesmente, de nos entediarmos ao longo de uma vida cotidiana mergulhada na banalidade. Pois essas questões – o passar dos anos, o luto, o amor ou o tédio – não são essencialmente morais. Você pode viver como um santo, respeitar e ajudar o próximo de forma maravilhosa, aplicar os direitos humanos como pessoa… e envelhecer, e morrer, e sofrer. Pois tais realidades, como disse Pascal, são de uma outra ordem, a qual diz respeito à ‘espiritualidade’, não se limita ao religioso e vai muito além da moral. Há espiritualidades com deuses, são as religiões, e espiritualidades sem deus, são as grandes filosofias.”
“Vida boa”
“Ora, aquilo que nos falta hoje é uma espiritualidade laica, uma concepção da ‘vida boa’, de uma visão do mundo comum que queremos construir juntos, à imagem daquilo que os gregos tinham elaborado no primeiro texto redigido no seu idioma, a Odisseia, de Homero. Você se recorda que, durante dez longos anos, Ulisses tomou parte da terrível guerra de Troia. Toda a sua história tem início com o caos e o sentido da sua viagem, que é também o sentido da vida, consiste em reencontrar a harmonia perdida, devastada pela guerra. Uma vez extinto o conflito, ele deve voltar para casa, em Ítaca. Mas a sua viagem é repleta de emboscadas. Uma delas tem um belo nome: Calipso. Esta deusa sublime apaixona-se loucamente por Ulisses e decide mantê-lo prisioneiro. Aliás, o seu nome vem do grego calyptein, que significa esconder. Ela é linda, a sua ilha é paradisíaca e ela está disposta a tudo para ‘esconder’ o seu amante na sua ilha, impedindo-o de retornar para casa. Mas Ulisses se sente atraído pelos seus como um imã e, provavelmente, se sente muito mais atraído ainda pelo seu reino, o qual constitui o seu lugar natural na ordem cósmica. Todas as noites, ele chora contemplando esse mar que o separa da harmonia de Ítaca. Então, Calipso lhe oferece o impossível para um humano: a imortalidade e a juventude eterna, com a condição de ele permanecer nos seus braços. Ulisses recusa, ele resiste à tentação, e o significado dessa recusa é abissal. Tal significado continua presente ao longo dos séculos, pois isto quer dizer que o objetivo da existência humana não é alcançar a salvação eterna, conseguir a imortalidade, porque uma vida de mortal exitosa é muito superior a uma vida de imortal fracassada. A ‘deslocalização’, a vida longe de si mesmo, fora da harmonia de um lugar natural é, aos olhos de Ulisses, pior que a morte. Consequentemente, é uma espiritualidade laica, uma definição não religiosa da vida boa que se esboça, e tal significado continua presente ainda hoje, para nós que vivemos como nunca o desencanto do mundo. Não se pode, efetivamente, como Ulisses, preferir uma existência de mortal reconciliada com o mundo diante da miragem religiosa de uma busca de imortalidade? Não seria necessário esforçar-se para viver com lucidez, em concordância com a condição humana, que é aquela de mortais, em harmonia com os outros e com a ordem do mundo? Este é o cerne de toda a sabedoria laica, de toda a espiritualidade filosófica que não passa por nenhum deus e nem pela fé. Se quisermos reinventar uma ‘política da civilização’, se quisermos definir uma orientação, muito mais do que de moral, é de espiritualidade que vamos precisar, de filosofia mais do que de estratégias e de poder. “
O futuro da educação
“Primeiramente é necessário fazer uma distinção crucial entre ensino (que diz respeito aos professores e aos alunos no espaço público de um estabelecimento de ensino) e educação (que é, e deve continuar sendo, da alçada de pais e de filhos no seio da família): as palavras têm um sentido e não se deve confundir a educação dada no âmbito das famílias com a “instrução pública”. Para nós, ocidentais, três grandes princípios servem globalmente de guia: o amor, a lei e as obras, ou se preferirem, o elemento cristão, o elemento judeu e o elemento grego. Sem amor, uma criança não terá essa capacidade de dar a volta por cima diante das dificuldades da vida, que os psicólogos chamam de ‘resiliência’. Sem a lei mosaica, ela não terá acesso ao universo do ‘simbólico’, ao espaço público e coletivo da urbe. Mas sem as obras (e é na Antiguidade que aparecem os gêneros literários, ao mesmo tempo em que as primeiras grandes filosofias), a criança não conseguirá compreender-se a si própria e nem entender o mundo que a cerca. Ela estaria privada dos esquemas intelectuais mais poderosos, aqueles que permitem que nos situemos no universo social e afetivo, mas também, de modo ainda mais profundo, que nos humanizemos. O amor, a lei, as obras: é isto que a educação e o ensino devem transmitir, na medida do possível complementando-se. É somente trabalhando em conjunto, ajudando as famílias a preparar para a escola e, reciprocamente, ajudando a escola a complementar o trabalho das famílias (essencialmente no terceiro nível), que sairemos do marasmo atual.”
Globalização
“O verdadeiro problema acarretado pela globalização não é tanto aquele das peculiaridades, mas a perda de poder dos estados-nação. De fato, no plano comercial e turístico, por exemplo, temos interesse em manter as peculiaridades. Em contrapartida, sob o efeito da competição generalizada entre os povos, as empresas, os laboratórios de pesquisa, as universidades, etc., o universo em que nos encontramos, não apenas escapa do nosso domínio, mas se mostra também desprovido de sentido, na dupla acepção do termo: privado, ao mesmo tempo, de significado e de direção. Consideremos um exemplo bem simples, que qualquer um de nós poderá constatar: todos os anos, todos os meses, e quase todos os dias, os nossos telefones celulares, os nossos computadores ou os nossos carros mudam. Eles evoluem. As funções se multiplicam, as telas aumentam, ficam mais coloridas, as conexões de internet melhoram, as velocidades e as memórias aumentam, os dispositivos de segurança progridem... Esse movimento, diretamente acarretado pela lógica da competição, é tão irreprimível que uma marca que não acompanhá-lo estará cometendo suicídio. Há uma obrigatoriedade de adequação que nenhuma marca poderá ignorar, quer queira quer não, tenha ou não sentido. Não é uma questão de gosto, uma escolha entre diversas possibilidades, mas um imperativo absoluto, uma necessidade indiscutível se a empresa quiser, pura e simplesmente, sobreviver. Nesta globalização que, atualmente, coloca todas as atividades humanas num estado de concorrência incessante, a história se move, doravante, independentemente da vontade dos homens. Para usar uma metáfora banal, mas incisiva: como uma bicicleta deve mover-se para frente para não cair, ou um giroscópio deve girar permanentemente para permanecer no seu eixo e não cair, nós temos que ‘progredir’ permanentemente, mas esse progresso mecanicamente induzido pela luta visando a sobrevivência não tem mais nenhuma necessidade de se situar no cerne de um projeto mais amplo, inserido em um grande desígnio.”
A liberdade e a felicidade
“Eu poderia receber objeções dizendo que a globalização não é um fenômeno tão novo tal como eu pareço acreditar e que estou dramatizando um pouco as coisas. De modo algum. Isto será facilmente compreendido se, por um instante, levarmos em consideração a diferença abissal que separa a nossa globalização atual dos seus primeiros esboços, na época do surgimento da ciência moderna que, sem dúvida alguma, foi a primeira forma de discurso com vocação ‘mundial’. No racionalismo dos séculos 17 e 18, em Bacon, Descartes, nos enciclopedistas franceses ou em Kant, por exemplo, o projeto de um domínio científico do universo possuía ainda uma abordagem emancipadora. Quero dizer com isto que, no seu princípio, havia uma sujeição à realização de determinadas finalidades, de determinados objetivos considerados como benéficos para a humanidade. O interesse não se limitava apenas aos meios que nos permitiriam dominar o mundo, mas aos objetivos que esse próprio domínio nos autorizaria, se fosse o caso, a realizar – nisto, esse interesse não era puramente técnico, apenas ‘pragmático’. Dominar o universo de forma teórica e prática, pelo conhecimento científico e pela vontade dos homens, não era pelo simples prazer de dominar, pela pura fascinação narcisista em relação à nossa própria potência. Não se visava a dominar por dominar, mas para compreender o mundo e poder, se necessário, servir-se dele no intuito de atingir determinados objetivos superiores que, no final, se agrupavam em dois capítulos principais: a liberdade e a felicidade. Para os representantes do Iluminismo, tratava-se, antes de mais nada e graças ao progresso das ciências e das artes (da indústria), de emancipar a humanidade das correntes do ‘obscurantismo’ medieval, mas também da tirania que a natureza brutal fazia pesar sobre nós. Em outras palavras, a dominação científica do mundo não era uma finalidade em si, mas um meio para se ter uma liberdade e uma felicidade enfim acessíveis a todos.”
Competição
“Com a globalização da competição, a história muda radicalmente de sentido: ao invés de se inspirar em ideais transcendentes, o progresso ou, mais exatamente, o movimento das sociedades vai pouco a pouco se reduzindo a não ser mais nada além do resultado mecânico da livre concorrência entre os seus diferentes componentes. Basta, para compreendermos bem essa ruptura radical com a época do Iluminismo, refletirmos um instante a respeito: dentro das empresas, mas também dos laboratórios científicos, dos centros de pesquisa, a necessidade de se comparar permanentemente com os outros – o que designamos hoje pelo nome de benchmarking – de aumentar a produtividade, de desenvolver os conhecimentos e, sobretudo, as respectivas aplicações na indústria, na economia, em suma, no consumo, tornou-se um imperativo pura e simplesmente vital.”
Economia moderna
“A economia moderna funciona como a seleção natural em Darwin: numa lógica de competição globalizada, uma empresa que não progride diariamente, é uma empresa fadada à morte. Disto decorre o formidável e incessante desenvolvimento da técnica, presa ao avanço econômico e por ele amplamente financiada. Disto decorre também o fato que o aumento do poder dos homens sobre o mundo tornou-se um processo totalmente automatizado, incontrolável e, até mesmo, cego, pois vai muito além das vontades individuais conscientes. Este não é nada mais do que é o resultado inevitável da competição. Em quê, contrariamente ao ideal de civilização herdado do Iluminismo, a globalização técnica é, exatamente, um processo sem finalidade, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido: ninguém sabe mais para onde nos leva o curso de um mundo mecanicamente produzido pela competição e que não é dirigido pela vontade consciente dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de uma sociedade que, ainda no século passado, podia se chamar res publica , república: etimologicamente, “negócio” ou “causa comum”. Neste universo, não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade para ser mais livre e mais feliz, mas de subjugar por subjugar, de dominar por dominar. Por quê? Justamente, por nenhuma razão, ou melhor, porque é simplesmente impossível fazer de outro modo. Retomar o controle sobre o curso do mundo, este é o desafio que a política moderna, se ela quiser continuar existindo, ou melhor, tornar-se novamente democrática, deverá vencer: como retomar o controle sobre um curso do mundo que nos escapa das mãos? Como recobrarmos o sentido das promessas da democracia que, hoje, estão sendo traídas? Questão complementar: em que nível essa retomada de controle poderá ocorrer?”
Crise mundial
“Este é um formidável chamamento à ordem. Os mercados financeiros e as agências de classificação de risco nos prestaram serviço, pois os Estados, e não apenas a Grécia, por pura demagogia permitiram que as finanças públicas derivassem. Para compreendermos a que ponto isso foi grave e absurdo, é necessário vermos que a crise mundial é, antes de mais nada, uma crise do endividamento.
Desde os anos 1980, os Estados Unidos conheceram uma bipolarização crescente do mundo do trabalho, tendo, numa ponta, um número reduzido de trabalhadores com altos salários e, na outra ponta, uma massa cada vez maior de assalariados mal remunerados. No meio, uma formidável concentração de classes médias. Ora, foram elas que impulsionaram o crescimento. Disto decorre uma nova equação a ser resolvida: como segurar a economia apesar do declínio nessa faixa intermediária? Resposta imposta aos bancos americanos por (Bill) Clinton e Alan Greenspan, portanto pela intervenção do Estado: graças ao endividamento massivo das famílias menos abastadas (os famosos subprimes). Consequência: não são mais os salários que vão permitir o crescimento, e sim os créditos. A riqueza não vai mais ser produzida a partir da riqueza, mas a partir da dívida, fazendo com que se recorra aos empréstimos de altíssimo risco. Disto decorre também o fato que, nos Estados Unidos, os setores mais atingidos foram aqueles, como o setor automotivo, em que há a necessidade de se recorrer a um crédito, doravante impossível em razão da saturação. Portanto, é somente numa segunda fase que a crise financeira vai se instalar, pois é no momento posterior que se vai gerar títulos baseados em créditos adulterados e disseminá-los pelo mundo dissimulando-os, com a cumplicidade das agências de classificação de risco, sob a forma de produtos financeiros de tão pouca clareza que nem os próprios banqueiros os reconheciam. Naturalmente, essa operação acarretou uma enorme crise de confiança interbancária que, por sua vez, mas somente numa terceira fase, trouxe consequências para a economia. Se admitirmos o raciocínio acima, que pode ser perfeitamente comprovado pelos números do endividamento americano, compreenderemos também que a saída da crise não passa pela regulação e nem pela moral. Certamente, estas duas coisas são indispensáveis se quisermos evitar uma recaída.”
Novos rumos?
“A verdadeira equação a ser resolvida é, antes de mais nada, a seguinte: como reaver um crescimento saudável, impulsionado pela riqueza e não mais pela dívida? Onde está a nova “nova economia”? Na economia verde? Em outros lugares, mas onde? Com uma questão subjacente, impossível de ser elucidada: é ecologicamente sustentável? Deste ponto de vista, sejam quais forem os méritos do G 20 – cujo mérito principal é existir – tudo está para ser feito.”